segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Mémoires du Cinemà - Anticristo (Antichrist) - 2009


Autoria reprodução
Fonte: http://www.freecovers.net/

Ficha técnica:
http://www.imdb.com/title/tt0870984/

O último filme do subversivo diretor dinamarquês Lars Von Trier, integrante do manifesto cinematográfico Dogma 95, merece, dos verdadeiros apreciadores da sétima arte, ao menos um olhar mais atento.

"Anticristo", lançado há algumas semanas em São Paulo, aborda a trajetória de um casal que procura reestabelecer o equilíbrio emocional após a morte de único filho que precipita-se da janela do apartamento, porém, contrariando as determinações éticas da medicina psiquiátrica, o homem, renomado psicanalista, chamado durante todo o filme apenas por 'ele' (interpretado por Willian DaFoe), opta por tratar pessoalmente a própria mulher, 'ela' (interpretada brilhantemente por Charlotte Gainsburg, premiada em Cannes como melhor atriz em 2009), uma escritora que não consegue elaborar o luto da perda do filho.

Aparentemente o enredo parece simples, contudo, ao longo do filme as personagens revelam enorme profundidade psicológica marcadas sobretudo por suas opções profissionais, tornando a trama muito interessante: no intuito de expôr a esposa aos seus medos, pois segundo 'ele', as drogas podem ajudar a conviver com os traumas, mas não há cura sem exposição, 'ele' descobre que a montanha do Éden, onde o casal possui uma casa de campo, é o local onde 'ela' se sente mais ameaçado, mas o Éden também é o mundo criado pelos últimos escritos de 'ela'. Assim, adentrar ao Éden é também adentrar o mundo de 'ela', o mundo da lógica científica racional invadindo o mundo da abstração literária.

Além do enredo, "Anticristo" é um filme de imagens poderosas. Talvez numa das aberturas mais marcantes dos últimos dez anos da história do cinema, o casal aparece em cena monocromática de baixas rotações expondo suas carnes nuas no banheiro, carnes que lentamente se tocam até fundirem-se num balanço mole e contínuo texturizado pela água quente do chuveiro que lhes escorre pele convertendo-se em sexo, alternadamente, o filho inocente liberta-se do berço e, após observar pela porta entreaberta os pais já na cama do quarto, empurra uma cadeira até a janela de onde se atira para dentro da paisagem nevada ao som da ária "Lascia ch’io pianga" da ópera Rinaldo de George Friederich Handel.

Por si só, a intertextualidade criada entre imagem e som já permite uma releitura absolutamente nova ao final do filme.

George Friederich Handel - Lascia ch’io pianga
Lascia ch’io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà!
E che sospiri, e che sospiri la libertà!
Lascia ch’io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà!

Il duol infranga
queste ritorte
de’ miei martiri
sol per pietà!
(de’ miei martiri
sol per pietà!)

Lascia ch’io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà!
E che sospiri, e che sospiri la libertà!

Lascia ch’io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà!

http://www.youtube.com/watch?v=A4AnHNczryI

George Friederich Handel - Deixa que eu chore (tradução)

Deixe que eu chore, pelo meu destino cruel,
E porque eu desejo liberdade!
Deixa que eu chore
Pelo meu destino cruel,
Que eu suspire pela liberdade!
Que eu suspire,
Que eu suspire pela liberdade!

Deixa que eu chore
Pelo meu destino cruel,
Que eu suspire pela liberdade!

O meu destino cruel
Que eu suspire pela liberdade
De meus martírios
Só por piedade,
(De meus martírios
Só por piedade)

Deixa que eu chore
Pelo meu destino cruel,
E porque eu desejo liberdade!

Outra cena marcante está na capa do filme, quando 'ela' pede que 'ele' a esbofeteie durante o sexo, diante da recusa 'ela' se refigia no bosque e, deitada nua ao pé de um carvalho se masturba freneticamente entre as brumas que recaem sobre o Éden durante a madrugada. 'Ele' também nu sai a sua procura no bosque, e ao encontrá-la a penetra enquanto marca violentamente seu rosto com tapas recebidos cada vez com mais prazer. Pouco a pouco, das raízes do velho carvalho que acolhem os dois amantes surgem diversos braços, como se a a própria natureza ganhasse vida com a fecundidade masoquista do casal.


Autoria reprodução
Fonte: http://moviesense.wordpress.co

Bastante imprevisível, o desenlace mantém a mente do espectador ocupada mesmo após a sessão, quando finalmente, o veado, a raposa e o corvo se reencontram numa alusão clara às categorias de análise psicanalíticas que sustentam o mundo de 'ele'.

Poucas vezes um filme chegou ao ponto de me transtornar tão profundamente, tanto emocional como fisicamente. Se não pelo enredo, se não pela poêmica quando exibido no festival de Cannes, se não pelas imagens, se não pela atuação de Charlotte Gainsburg, se não pelo final, "Anticristo" é indispensável enquanto experiência cinematográfica, pois desdobra a linguagem do cinema em dmensões que extrapolam a tela.

Perturbador, mas indispensável.

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