domingo, 29 de dezembro de 2013

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

domingo, 22 de dezembro de 2013

Citações

Em homenagem a um dos aniversariantes da semana passada...

We age not by holding on to youth, but by letting ourselves grow and embracing whatever youthful parts remain.

Keith Richards

Imagem da semana

Autoria Marchesini
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/charges/

sábado, 21 de dezembro de 2013

Imagem da semana






Autoria própria

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Carta aberta aos meus futuros ex-alunos - Mad Men e a educação (I)

Quando escrevo que estou vivendo um momento de desagregação na minha vida, acho importante, até como forma de assimilar melhor esse sentimento, escrever...

Revisitando alguns posts de anos atrás, quando ainda estava começando como professor, percebi o quanto minha percepção da educação era mais romântica do que a própria realidade. Não me incomoda parecer ingênuo num determinado momento da vida, acredito realmente que faz parte do amadurecimento sob os quais estamos todos submetidos, além disso, acredito que não se trata de ser se ingênuo, mas de acreditar que a realidade pode ser melhor do que realmente é. Isso chama-se idealismo.

Se pudesse, em uma palavra, definir o que é esse sentimento de desagregação na minha vida profissional diria que é "impotência". E se pudesse, em um seriado, definir esse sentimento diria "Mad Men".

Mad Men no IMDB (clique aqui!)




Eu admito: não sou um desses fanáticos por séries que já tem no currículo "Breaking Bad", "Homeland", "House", "Revange", "Walking Dead", "Dr. Who" (sim, alguns alunos conhecem a série britânica que começou em 1963 e terminou em 1989, tornando-se a maior da história) entre tantas outras que surgiram a partir dos vícios dos anos 90 em "Friends" e "Seinfeld", por isso postei o vídeo das 100 melhores citações da primeira temporada (comecei a segunda essa semana), até porque, me parece que a primeira temporada apresenta as personagens de forma muito concisa e deperta a curiosidade do espectador. Citando, se não me engano, Paul Kinsey interpretado por Michael Gladis: "É impossível não amar Don Draper (interpretado por Jon Hamm)".

Em poucas palavras, a série, que já ganhou quinze Emmys e quatro Globos de Ouro, mostra o desenvolvimento da Sterling Cooper, uma agência de propaganda nos Estados Unidos durante os anos 60, e os profissionais envolvidos na construção do American Way Of  Life estadunidense em plena Guerra Fria.

Contudo, mais do que o sentido histórico (aos interessados pela história acredito que seja mais interessante assistir a "Dr Who", pois trata de cientistas e alienígenas que tem a capacidade de viajar no tempo salvando civilizações, corrigindo os erros da histórias, etc), Mad Men retrata uma realidade extremamente próxima do nosso século XXI, quando a propaganda e o consumo regulam as relações sociais através da manutenção do sistema econômico e político capitalista através da ação nos sentidos mais elementares da ominização.


Ainda que seja quase cruel fazer essa reflexão, Mad Men não é apenas uma série que um professor de história poderia utilizar para discutir as relações entre o consumo e capitalismo na Guerra Fria, mas a própria concepção da educação, afinal, tanta escolas-empresas vendem a educação-negócio, que não seria surpreendente que professores tratassem a educação como produto a ser vendido...

Continua...

Citações

Não permita que aquele que você acredita ser impeça que você seja aquele que você pode vir a ser.

Imagem da semana




Autoria Clement Celma
Fonte: http://clementcelma.com/photo/little-planets

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Noturno à janela do apartamento

Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.

Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.

Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.

Triste farol da Ilha Rasa.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

"Minha batatinha quando nasce..."

Uma ausência forçada pela dinâmica da minha profissional e particular me levaram a escrever menos, contudo estava refletindo esse final de semana, o último antes da férias de verão, que não se trata escrever menos, mas escrever de outra forma...

Talvez pelo que vem acontecendo novamente na minha vida profissional e particular, uma espécie de desagregação do quase tudo que faço, penso e sinto tem me levado a escrever do forma menos comprometida com a forma e mais com um sentido que existe para além da forma.

Não me agrada pensar que escrevo poesia, me parece um pouco arrogante, prefiro entender que venho escrevendo para além da forma, ou ainda, que procuro um sentido para além das letras articuladas em palavra, palavras articuladas em frase, frases articuladas em período, períodos articulados em...
Venho escrevendo de outra forma procurando sentido através da musicalidade, da rima, das estrofes, das temáticas, enfim... Um novo sentido para um novo momento da vida.

Venho postando alguns desses escritos sob o título de "Minha batatinha quando nasce..." em complemento aos poesias de verdadeiros poetas que eventualmente posta sob o título de "Batatinha quando nasce...".

Para os interessados segue o link de alguns desses escritos que já postei aqui:

http://caixacompedra.blogspot.com.br/2013/11/minha-batatinha-quando-nasce.html
http://caixacompedra.blogspot.com.br/2013/09/citacoes_24.html
http://caixacompedra.blogspot.com.br/2013/11/minha-batatinha-quando-nasce_19.html
http://caixacompedra.blogspot.com.br/2013/12/minha-batatinha-quando-nasce.html
http://caixacompedra.blogspot.com.br/2013/11/minha-batatinha-quando-nasce_27.html

Não pretendo, como vejo alguns escrevendo, agradar a ninguém ou conquistar aprovação para algo. Não quer dizer que estou acima de qualquer crítica, ao contrário, me gera uma enorme curiosidade o que esses escritos despertam nos outros. Contudo, escrevo por um sentido maior da escrita, um sentido quase que ascético intimamente particular, e por isso imagino que talvez não agrade a alguns.

A esses me desculpem.

Mas sinto-me pouco a pouco sondando profundezas de mim mesmo onde nunca estive antes e preciso fazer isso nesse momento... Um dia quase sem querer escrevi o que está abaixo, acho que representa bem esse sentimento...

Identidade literária

poesia?!
prosa.
todo prosa!
prolixo:
- pro lixo

"poesia...

Imagem da semana

Autoria Adão
Fonte: http://adao.blog.uol.com.br/

domingo, 15 de dezembro de 2013

"Minha batatinha quando nasce..."

Apólogo 2030

O que é amadurecer
senão a busca por um equilíbrio entre
o embrutecimento que nos é concedido
para continuar vivendo
e a inocência que nos é confiada
para fazer a vida valer a pena?

autoria própria

Imagem da semana





Autoria Sasha Vinogradova
Fonte: http://www.behance.net/gallery/Styles-of-russian-folk-painting/11972453

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Nada é verdadeiramente belo se pode ser usado para qualquer fim. Tudo o que é útil é feio, porque exprime apenas alguma necessidade do homem. E as necessidades do homem, são medíocres e repulsivas, como o é, também, sua fraca natureza.

Théophile Gautier

Imagem da semana


Autoria André Dahmer
Fonte: http://www.malvados.com.br/

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Imagem da semana





Autoria Chow Hon Lam
Fonte: http://www.flickr.com/photos/65414366@N00/sets/72157636359023846/

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

sábado, 7 de dezembro de 2013

Citações

No mar, o menor caminho entre dois pontos não é necessariamente o mais curto, mas aquele que conta com o máximo de condições favoráveis.

Amyr Klink

Imagem da semana


Autoria Daniel Cramer
Fonte: http://sushidekriptonita.blogspot.com.br/

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Imagem da semana

Autoria André Dahmer
Fonte: http://www.malvados.com.br/

"Batatinha quando nasce..."

Cuidado! Até cortar os nossos próprios defeitos pode ser perigoso. Pois nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro.

Clarice Lispector

Imagem da semana


Autoria Carlos Rúas
Fonte: http://www.umsabadoqualquer.com/

domingo, 1 de dezembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin

I
Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

II
A noite banha tua roupa.

Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.

És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.

III
Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.
Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.

Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.
Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.

IV
O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.
Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.
Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.

Então encaminhas no gelo e rondas o grito.
Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite... e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

V
Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
                aprendiz
                bombeiro
                caixeiro
                doceiro
                emigrante
                forçado
                maquinista
                noivo
                patinador
                soldado
                músico
                peregrino
                artista de circo
                marquês
                marinheiro
                carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI
Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana


Autoria Caco Galhardo
Fonte: http://cacogalhardo.uol.com.br/

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Visão 1944

Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão
e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo
vultos a rastejar na praia obscura
aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver
a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia, onde retratos,
cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver
uma casa sem fogo e sem janela
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver
os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver
na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro — e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver
a gente do Pará e de Quebec
sem noticia dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
Que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.

Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver
essa mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
— mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

Carlos Drummond de Andrade

"Batatinha quando nasce..."

Visão 1944

Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão
e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo
vultos a rastejar na praia obscura
aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver
a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia, onde retratos,
cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver
uma casa sem fogo e sem janela
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver
os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver
na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro — e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver
a gente do Pará e de Quebec
sem noticia dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
Que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.

Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver
essa mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
— mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana


Autoria Adão
Fonte: http://adao.blog.uol.com.br/

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Minha batatinha quando nasce..."

Carta a Camus no asilo de velhos

Hoje mamãe ainda não morreu. E já são oito e vinte e cinco de uma noite de fim de primavera, vinte e sete de novembro do ano de Nosso senhor de dois mil e treze.

Autoria própria

"Batatinha quando nasce..."

Carta a Stalingrado

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana




Autoria PEZ Artwork
Fonte: http://www.behance.net/gallery/Distroy/11540083

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Cidade prevista

Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais... não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana




Autoria Jeff Bennett
Fonte: http://rolanddeschane.deviantart.com/gallery/

domingo, 24 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

No país dos Andrades

No pais dos Andrades, onde o chão é
forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,
indago um um objeto desaparecido há trinta anos,
que não sei se furtaram mas só acho formigas.

No país do Andrades, lá onde não há cartazes
e as ordens são peremptórias, sem embargo tácitas,
ja não distingo porteiras, divisas, certas rudes pastagens
plantadas no ano zero e transmitidas no sangue.

No país dos Andrades, somem agora os sinais
que fixavam a fazenda, a guerra e o mercado,
bem como outros destritos; solidão das vertentes.
Eis que me vejo tonto, agudo e suspeitoso.

Será outro país? O governo pilhou? O tempo o corrompeu?
No país dos Andrades, secreto latifúndio,
A tudo pergunto e invoco; mas o escuro soprou; e ninguém me secunda.

Adeus, vermelho
(viajarei) cobertor de meu pai.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana

Autoria André Dahmer
Fonte: http://www.malvados.com.br/

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana




Autoria Chad Person
Fonte: http://www.chadperson.com/bodyofwork/here-there-be-monsters/

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Desfile

O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.
Como remédio entornado
em camisa de doente;
como dedo na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo: fiquei mais moço.
Já não tenho cicatriz.
Vejo-me noutra cidade.

Sem mar nem derivativo,
o corpo era bem pequeno
Para tanta insubmissão.
E tento fazer poesia,
queimar casas, me esbaldar,
nada resolve: mas tudo
se resolveu em dez anos
(memórias do smoking preto).
O tempo fluindo: passos
de borracha no tapete,
lamber de língua de cão
na face: o tempo fluindo.
Tão frágil me sinto agora.
A montanha do colégio.
Colunas de ar fugiam
das bocas, na cerração.
Estou perdido na névoa,
na ausência, no ardor contido.
O mundo me chega em cartas.

A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
mais longe, mais baixo, vejo
uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.

Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho mãos experientes.
Tenho calças experientes.
Tenho sinais combinados.
Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
Tudo foi prêmio do tempo
e no tempo se converte.
Pressinto que ele ainda flui.
Como sangue; talvez água
de rio sem correnteza.
Como planta que se alonga
enquanto estamos dormindo.
Vinte anos ou pouco mais,
tudo estará terminado.
O tempo fluiu sem dor.
O rosto no travesseiro,
fecho os olhos, para ensaio.



Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana



Autoria Jukka Korhonen
Fonte: http://www.behance.net/gallery/The-Brush/11438223

terça-feira, 19 de novembro de 2013

"Minha batatinha quando nasce..."

eu vivo num país

eu vivo num país quanto

eu vivo num país onde

eu vivo num país qual

eu vivo num país cujo

eu vivo num país que

eu país
vivo
nu
país chamado
solidão

Autoria própria

Imagem da semana



Autoria Toni Demuro
Fonte: http://www.tonidemuro.com/

"Batatinha quando nasce..."

Morte do leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 17 de novembro de 2013

"Minha batatinha quando nasce..."

essa noite sonhei que o mundo acabava
acordei desesperado a te procurar
mas você nunca esteve aqui

Autoria própria

"Batatinha quando nasce..."

Edifício São Borja

Cólica premonitória
caminho do suicídio
fome de gaia-ciência
São Borja

Esqueléticos desajustados
brigando com a vida nus
surgindo à noite em fragmentos
São Borja

Ritmo de poeta mais forte
nesta mão se inoculando
projeto de fuga ao Chile
à tua casa de infância
ao adro da igreja tombada
São Borja

Cerveja em copo de pedra
sonhos os mais obscuros
na palma da mão
na reuma
São Borja

Santo da mais pura estima
nunca jamais invocado
sem estrelas se desfazendo
ou navios se cruzando
e se saudando: boa viagem
no caos
na peste
no espasmo
São Borja

São Borja São Borja São
quatro mãos quatro facadas
num peito só todo aberto
e nele cabe a cidade
o vento na roupa
uma outra longa amazônia
São Borja

Edifício poço luz
nome assobio no vácuo
esperança de emergência
São Borja
São Borja

Imolação das venezas
as terras distribuídas
o mar limpo
a cabeça loura
em ativa deleitação
viajando sozinha
São Borja

Palavras de muita força
embalsamadas
explodindo na alva
futuras verdades ainda sangrentas
cofre a saquear, jardim
de chaves fluidas
São Borja

Trompa de caça trombeta
de final juízo improvável
sinusite
raiva
São Borja

Canoa sem fado e peixes
canções jandaias madréporas
anêmonas
sorrimos
São Borja
outra vez sorrimos

O tempo se despencando
por trás das guerras púnicas
na face dos gregos
num dedo de estátua
posse de anel
segredo
São Borja

A vida povoada
a morte sem aproveitadores
a eternidade afinal expelida
estamos todos presentes
felizes calados
completos
Santo São Borja.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana

Autoria: Quino

domingo, 3 de novembro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Infelizmente nada mais apropriado... A exceção do cão...

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana

Autoria Daniel Lafayette
Fonte: http://ultralafa.wordpress.com/

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

"Play it again Sam..."

¡Tchau Radar!
Humberto Gessinger e Esteban

Só um rascunho
A folha está cheia deles
Riscos e palavras
Procurando um caminho

Só um caminho
A vida está cheia deles
Meu destino eu faço
Traço passo a passo

Sou um rascunho
Pelo jeito a mão tremia
Pelo jeito pretendia
Passar a limpo outro dia

Hoje estou só
Hoje estou tão cheio deles
Sou um rascunho
Procurando um caminho

Fica pra outra dia
Ser uma obra-prima
Que não fede nem cheira
Não fode e nem sai de cima

Fica pra outra hora
Ser alguém importante
Se o que importa não importa
Não dá nada ser irrelevante

Só um rascunho
Um risco na mesa do bar
Carnaval sem samba
Outra praia, mesmo mar

Só um rascunho
Um torpedo de celular
Sem sinal na área
Sem chance de chegar

Não fica pronto nunca
Não há final feliz
Não há razão pra desespero
Ouça o que o silêncio diz

Não tem roteiro certo
Não espere um "gran finale"
Tão pouco espere amiga
Que a minha voz se cale

Fica pra outra dia
Ser uma obra-prima
Que não fede nem cheira
Não fode e nem sai de cima

Fica pra outra hora
Ser um cara importante
Se quem importa, não se importa
Tchau radar, vamos adiante

Fica pra outra dia
Ser uma obra-prima
Que não fede nem cheira
Não fode e nem sai de cima

Fica pra outra hora
Ser um cara importante
Se o que importa, não me importa
Tchau radar, vamos adiante


Imagem da semana


Autoria Allan Sieber
Fonte: http://talktohimselfshow.zip.net/

terça-feira, 29 de outubro de 2013

"Batatinha quando nasce..."

Nova Canção do Exílio

Um sabiá na
palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,

na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vida e
voltar
para onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

Carlos Drummond de Andrade

Imagem da semana


Autoria Adão
Fonte: http://adao.blog.uol.com.br/