Data: 03 de junho de 2009
Em entrevista concedida à repórter Juliana Linhares da revista Veja São Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris fala sobre seus estudos acerca da condição psíquica do homem na sociedade contemporânea, numa palavra, Calligaris procura compreender como “o homem passou a não saber mais como ‘ser homem’”.
Segundo o psicanalista italiano radicado no Brasil, o homem encarna, a partir do século XIX, dois papéis sociais que lhe permitiram exercitar sua virilidade: o papel de provedor e o papel de aventureiro. Com as conquistas femininas, e feministas, de espaços tradicionalmente masculinos nas últimas décadas, a mulher vem ascendendo social e culturalmente como provedora, disputando, ainda que de maneira desigual, colocações profissionais e tornando-se financeiramente responsável pelo núcleo familiar.
Com isso, o homem, que se colocava como aventureiro enfrentando heroicamente o cotidiano profissional, passa a sentir-se incapaz de exercer seu poder e procura satisfazer sua necessidade de auto-afirmação viril em outras aventuras como esportes e sexo, pois, segundo Calligaris, ao contrário da mulher, o homem não tem capacidade de apreciação da vida simples, “eles [os homens] se relacionam muito mal com essa vida cotidiana”.
Assim, o homem passa a questionar qual seu novo papel, e “isso é uma coisa que quase todos os homens gostariam de saber”, uma vez que “ele [o homem] não toca nem de perto a constelação de imagens que culturalmente constituem o universo de figuras masculinas com a qual sonhou”.
Antes de mais nada, devo pontuar que sou admirador da inteligência de Contardo Calligaris: aprecio sua coluna semanal publicada pelo jornal Folha de São Paulo às quintas-feiras, na qual o psicanalista promove reflexões muito interessantes acerca dos fatos noticiosos divulgados amplamente pela mídia e representações artísticas tais como o cinema, o teatro e a literatura entre outros. Ao término da leitura não pude deixar de surpreender-me, primeira e novamente com o profissionalismo e sensibilidade de Calligaris ao construir esse modelo de homem contemporâneo com o qual já flertara algumas vezes antes de conhecer o trabalho do psicanalista; em segundo lugar, com o tom desafiador, quase cínico, com que a jornalista Juliana Linhares conduz a entrevista.

Autoria Belmiro de Almeida (1887)/Acervo do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
Fonte: http://commons.wikimedia.org
Legenda: Arrufos, de Belmiro de Almeida, 1887
Justamente por identificar-me com os estudos Calligaris em desenvolvimento desde a década de 80, gostaria de fazer algumas reflexões que julgo interessantes.
Possibilidades biofisiológicas
Ainda que essa não seja exatamente minha especialização, parece-me que a construção do papel masculino na organização social e cultural tem raízes mais profundas se considerarmos a questão do ponto de vista antropológico e evolutivo, pois os ancestrais masculinos da espécie humana gozavam de certas adaptações biofisiológicas que lhe permitiram maior vigor físico, determinando-lhes funções ligadas ao papel de provedor e aventureiro como a caça e proteção do bando. Assim, talvez esses papéis não sejam somente construídos culturalmente sob a roupagem de preconceitos fabricados ao longo do século XIX, mas talvez segundo certas especificidades biológicas enraizadas há milhares de anos e que permanecem latentes.
Ascendência da mulher
Certa vez um professor da faculdade disse-nos que se tivessem feito a ele a mesma pergunta que fizeram ao renomado historiador inglês Eric Hobsbawn, quando lançou seu livro A Era dos Extremos, uma leitura muito interessante sobre a história do século XX – “Qual a imagem que sintetiza o século XX? – ele nos disse que responderia imediatamente – “Uma mulher”. Hoje compreendo o que quis dizer com isso, pois o desastre das duas primeiras guerras representam não apenas o fracasso do homem enquanto espécie, mas do homem enquanto gênero, pois à medida que trincheiras se enchiam de homens mortos, desfigurados e aleijados, as mulheres, pela primeira vez em séculos deixavam o lar, lutavam na frente de batalha mais importante das guerras: produção de alimentos e água, fabricação de armamentos e munições, preparação de medicamentos entre tantos outros.

Autoria reprodução
Assim, com o fim da segunda guerra mundial e a divisão do mundo em dois grandes blocos políticos durante a guerra fria, o gênero feminino mais consciente da sua importância passou a reivindicar maior autonomia dando início a inúmeros movimentos de caráter emancipacionista. Com a queda do muro de Berlim o mundo se “reunificou” num grande bloco de consumo, no qual as mulheres encontraram oportunidade de exercer a recém conquistada autonomia, não por reconhecimento da mesma, mas por uma lógica de mercado que, demandando competitividade, ou seja, redução do custo final do produto para o consumidor, preferia empregar mulheres a baixos salários a homens.
O homem e o século XXI
Por fim, me parece que o assunto investigado pelo psicanalista Contardo Calligaris merece mais seriedade do que “nossa, como eles sofrem”.

Autoria reprodução/J. Howard Miller
Fonte: http://finneyfrock.files.wordpress.com/
Legenda: pôster norte-americano produzido durante a segunda guerra mundial conhecido como Rosie the Riveter.
Trata-se de uma transformação social e cultural profunda e complexa da espécie humana, tanto para o gênero masculino como para o gênero feminino, pois papéis enraizados antropológica e culturalmente estão se resignificando, o que deveria merecer senão nossa consideração ao menos nosso respeito.

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